quarta-feira, 26 de julho de 2017

JOÃO DORIA E OS MOINHOS DA CRACOLÂNDIA

Prof Eduardo Simões

http://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/67/2017/02/03/3fev2017---vista-aerea-da-cracolandia-no-centro-de-sao-paulo-agosto-de-2016-1486159443335_956x500.jpg
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__ Não deixa de ser tocante, o voluntarismo perceptível nas ações do atual prefeito de São Paulo em sua luta contra a persistente cracolândia, instalada nas ruas centrais de sua cidade, que tem resistido, impoluta, a todas as tentativas de extinção, por mais nobres que sejam as intenções ou rude a vontade de quem a afronta. De fato, para a solução desse desafio não basta apenas a boa intenção; como diz o aforismo popular, “de boas intenções o inferno está cheio”, do mesmo modo que a vontade, que ignora as circunstâncias que determinam a realidade a ser modificada, está fadada ao fracasso.
__ Pelo que podemos deduzir até agora – as nossas autoridades, e isso é histórico, não primam em esmiuçar os móveis de suas ações; talvez achem que perdem a “autoridade” quando dão muitas satisfações àqueles que representam (!) – o senhor prefeito parece ser movido pelo método da “bala de prata”: eliminar o problema de uma só vez com um golpe vigoroso, como quando se reduz um membro fraturado de uma pessoa, que é certamente derivado da mentalidade behaviorista do grupo político que lhe dá sustentação.
__ Numa intervenção social de natureza behaviorista não importam as razões ocultas sob a etiqueta de “afetividade”, é-lhe indiferente a forma como o “problema” é abordado, se na “marra” ou no carinho, o que interessa é o resultado, da mesma forma como pouco importa a história do organismo, a criatura ou o ser humano sobre o qual recairá a intervenção do agente, visto como que perfeitamente isolado e afetivamente neutro em relação a este; separa-os os hábitos, o comportamento. Em outras palavras: não importa as causas que levaram os viciados àquele estilo de vida, aparentemente tão miserável, o que importa é acabar, da maneira mais mecânica possível, com tal estilo de vida – talvez passe pelo gestor a mesma coisa que passava na cabeça do líder comunista Luís Carlos Prestes, quando, numa entrevista, lhe perguntaram sobre o internamento compulsório de opositores em manicômios, na Rússia, como o cientista Andrei Sakharov, ao que Prestes respondeu: “quem não gosta da União Soviética só pode estar doido!”
__ Para quem olha, sem preconceito e sem abrir mão de sua afetividade original, uma “falha” estrutural da espécie humana, quiçá escrita em seu código genético, não pode deixar de se abismar com o estado de degradação em que caem aquelas pessoas, visível em toda aquela sujeira e promiscuidade confusa que rondam as cracolândias, assim como não dá para evitar a sensação de que estamos diante de um grande desafio e um grande mistério; como pode um ser humano se acomodar a isso? O que leva uma pessoa a ficar nesse estado? O que se pode fazer? Seria absurdo alguém imaginar que eles fazem isso só para “provocar” as pessoas de “bem” ou que as cracolândias existem apenas por causa do tráfico de entorpecentes, que, decerto preocupa, mas há causas mais profundas, aparentemente ignoradas, a levar os gestores a dedicarem-se apenas em intervir nas consequências: as cracolândias em si ou o combate aos traficantes, sem resultados consistentes – jornais já denunciam que viciados estão voltando para a área da cracolândia, desocupada á força pela PM e Guarda Municipal, em maio, numa ação cinematográfica... As chances da iniciativa de Doria na cracolândia dar certo são quase nulas; mas para não ficar apenas na crítica deixo algumas sugestões de como abordar essa questão:

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http://veja.abril.com.br

__ A primeira coisa a fazer é respeitar os pertences dos viciados, pois neles existe uma memória carregada de afetividade. Um plástico, uma caixa de papelão, aquela veste ou cobertor velho, sujo e rasgado, já abrigou alguém ou um animal que ele já amou ou com ele compartiu a solidão das ruas, etc. Um plástico, precariamente preso a um muro, é, para essa gente, como uma casa, um lar ou um abrigo para nós, e da mesma forma que um agente público não pode invadir uma casa sem uma ordem judicial, ninguém deveria ter o direito de tomar e dar fim às coisas dessa gente sem. Os pertences dessa gente não são apenas “objetos velhos” que o gestor público troca por “novos”, achando que fez uma ação digna de um bom escoteiro, mas antes memórias que precisam ser respeitadas, enquanto se propõe a possibilidade de novas memórias, daqui por diante, em novos e limpos cobertores fornecidos pela sociedade, por meio dos gestores e seus agentes que a representam.
__ Mas isso toma tempo e tem custo mais elevado do que simplesmente pegar essas coisas e substituí-las, à força, por novos objetos de igual serventia. O PSDB precisa definir quando vai começar a gerir gente ou se continua apenas com a gestão de patrimônio público material; e a sociedade paulista também precisa se decidir e deixar bem claro a sua opção a esse respeito, para que seus membros, nas ruas, comecem a agir e a se envolver para garantir a melhoria da qualidade das relações humanas no espaço público, ao invés de fazer o que é regra atualmente: segue adiante, fingindo não ver o que está acontecendo.
__ Segundo, é preciso entender as cracolândias como o fruto final, maduro, de uma série de mazelas sociais, com um largo histórico na nossa sociedade, e para isso basta considerar a origem das pessoas que estão lá que, pelo pouco que sabemos, por meio da grande imprensa, são majoritariamente pobres – convenhamos que fora dos momentos de grande impacto, como mais de mil policiais cercando e dispersando os viciados, além de um ou outro episodio da crônica policial, como o assassinato do segurança que foi resgatar uma jovem, quase nada se fala sobre essa microssociedade e sua dinâmica interna. Só nos interessamos pelos pobres quando suas inciativas ofendem o Código Penal, criado para regular os conflitos da classe média e alta do país.
__ Mas a gente das cracolândias não é só pobre, em sua maioria, é também jovem, muitos menores de idade, incapazes de discernir corretamente toda extensão de sua terrível escolha: ir morar ali. Será que havia, para eles, alternativa? Aqui nos defrontamos com um estorvo histórico, o pior deles, numa sociedade de matriz escravocrata: o que fazer com as crianças, em especial as nascidas dos escravos, que também eram necessárias para aumentar o “plantel”, e reduzir as despesas e os riscos com a compra de novos escravos. Havia aí uma “opção de investimento” difícil: cuidar bem do menino, até que ele se tornasse um jovem forte e fosse vendido por um bom preço, correndo o risco de nesse meio tempo ele adoecer gravemente, se acidentar, morrer ou fugir, ou explorá-lo, desde a mais tenra idade para reduzir as “despesas” de manter uma criança, que não produz e só consome. Os resíduos dessa fase histórica, presentes até hoje nas famílias de vastas regiões do Brasil, apontam para a segunda alternativa. Nos últimos anos do século XX, as leis se multiplicaram e se esmiuçaram numa tentativa de libertar crianças de trabalhos totalmente inadequados, insalubres, como pedreiras e carvoarias, nos sertões, para não falar do turismo sexual com adolescentes quase crianças, nas cidades litorâneas, e levá-las para a escola, e muitos ainda há, herdeiros do passado colonial, que consideram a educação de seus filhos não um investimento para o futuro, mas uma despesa excessiva no presente.

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g1.globo.com

__ Aqui topamos com outro problema estrutural grave: nossa incapacidade histórica de criar e preservar uma cultura de valorização da educação em todos os seus aspectos: familiares, escolares e sociais. A família tradicional está muito desestruturada, e a criança continua sendo tratada como uma espécie “patrimônio material” da família, por pais imaturos. Há uma explosão da gravidez precoce, para a qual o estado toma medidas paliativas à conta-gotas, quando não ignora. As promessas de cuidados e educação para a infância e a adolescência, os dados estatísticos o comprovam, estão entre as menos cumpridas por nosso políticos.  
__ Eles, os políticos, por sua vez, não perderam a oportunidade para dar um mau exemplo, postergando ao máximo a criação de um sistema educacional nacional, a primeira lei a esse respeito data de 1961, enquanto a maioria dos avanços educacionais ficam só em promessas ou no escamoteamento de dados estatísticos, grosseiramente desmoralizados toda vez que o país participa de alguma bateria de testes internacional. A questão educacional é discutida apenas sob o viés quantitativo, que pode ser apresentado como dado “concreto” durante as disputas eleitorais, enquanto o aspecto qualitativo fica relegado ao último plano, fazendo com que a principal causa do abandono da escola por jovens seja o desinteresse pelo que acontece nela. Uma escola que não forma para a vida real não encanta o jovem. A criação dessa escola, hoje, é-nos um mistério, porque nós nunca desenvolvemos e difundimos na nação uma teoria educacional científica que fosse aceita pela maioria e a ensinasse a lidar com a formação de crianças, simplesmente porque isso nunca foi prioridade para a nossa sociedade – nós somos o único país do mundo civilizado a massacrar toda uma elite de grandes educadores, mandando a prendendo a uns (Lauro de Oliveira Lima), torturando a outros (Maria Nilde Castellani), exilando a alguns (Darcy Ribeiro e Paulo Freire), assassinando a outros (Anísio Teixeira), quando no mundo inteiro acontecia uma incrível revolução educacional.  Um jovem aspirante ao trabalho, sem uma formação adequada, não é um alvo fácil da cracolândias?
__ E o espaço público? Outra formidável fonte de aprendizagem, hoje fechado às crianças e jovens das grandes cidades, por questão de segurança, uma vez que o Estado Brasileiro prima pela desorganização e ausência de rumo no trato dessa questão. As balas perdidas, os sequestros, os latrocínios marcam a marcha do fracasso da segurança pública no país. A ida a um simples baile juvenil, uma das experiências mais prazerosas dessa fase, tem sido, para muitos jovens, em especial os mais pobres,  uma sentença de morte. Jovens de classe média são isolados e impedidos, por seus país, da convivência nos espaços públicos das grandes cidades – ficou famosa uma matéria, num programa de variedades da TV, que mostrava jovens de classe média-alta do Rio de Janeiro, que conheciam razoavelmente bem as ruas de Miami, nos Estados Unidos, mas nunca tinham ido, por medo ou conforto, ao centro de sua própria cidade. Eles ficaram pasmos com o que viram. Ao jovem de classe baixa fica a ameaça de morte prematura, por bala perdida, em casa ou na escola, ser assaltado ou brutalizado por outros jovens de sua classe social, sem falar do cerco de traficantes, dentro da própria escola, por jovens criminosos, para lá enviados por autoridades do Poder Judiciário, antes de estarem recuperados. Se um jovem aluno promissor dessa escola cair na “cantada” ou na pressão desses minitraficantes ou “aviõezinhos”, e acabar, por isso, morando numa cracolândia, de quem é a responsabilidade?         
__ Por fim, ninguém decide de repente, num belo dia, largar tudo e ir morar na cracolândia mais próxima; antes uma série de acontecimentos fortuitos ou estruturais, negativos, ou não – grandes vitórias pessoais, mal administradas, podem causar estragos num psiquismo “fraco” – arrastaram essas pessoas para as ruas. Cada ser humano, diferente dos ratos que os behavioristas criam em laboratórios, reage de uma maneira diferente aos sucessos e aos fracassos da vida, alguns passíveis de serem minorados e até evitados pelas autoridades públicas, outros não. As autoridades podem gerar mais estabilidade social dando bom exemplo de comportamento ético, roubando menos, estimulando com medidas corretas o sistema econômico para que haja mais e melhores empregos, etc., mas não podem evitar o colapso de alguém como resposta a uma perda pessoal irreparável, mas decerto que a parte do governo precisa ser feita, e muito bem feita, para que a vida na sociedade não viciada pareça mais interessante e desafiadora, e não a “droga” que as vezes parece ser, até para quem não é viciado... Uma coisa é certa: os moradores desses ajuntamentos já estavam gravemente alterados antes de irem para as ruas; a cracolândia apenas os acolheu, já que ninguém mais os acolhe.
__ Feito essa avaliação inicial, podemos passar agora a algumas sugestões para a solução desse problema.

Nem só Quixote nem só Sancho Pança

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__ A gestão pública, assim como a vida de um indivíduo, terá mais possibilidade de sucesso se souber encontrar a sintonia fina entre o idealismo do gestor e a análise fria do técnico, sobre as características do meio que se quer transformar, para decidir sobre a melhor intervenção. O problema dos nossos gestores quanto a cracolândia é que eles até agora só viram um dos polos da questão, ignorando o outro. A ação de Doria, por exemplo, parece muito com a arremetida direta de Quixote contra os moinhos de vento, a natureza realidade não muda pela desmedido da ação tomada, enquanto a de Haddad, no outro extremo, assemelhou-se à de Sancho Pança: “os moinhos estão lá, o jeito é conviver com eles”, num movimento de acomodação não transformadora.
__ A primeira consciência que o administrador deve ter quanto a esse problema é que, conforme descrevemos acima, ele tem raízes vastas, profundas e antigas, em nossa sociedade, sendo, portanto, necessária uma ação conjunta de gestores dos três níveis (municipal, estadual e federal). O fim das causas das cracolândias deve se tornar um grande objetivo nacional, e para tanto urge que esses gestores tomem uma série de medidas, cada um no seu nível, que pressionem as raízes sociais do problema, a saber: uma ação policial mais planejada, profunda e de longo prazo contra o tráfico de entorpecentes; ações que protejam as famílias, em especial aquelas que estão numa situação de vulnerabilidade; um combate mais consequente contra a gravidez precoce, transformando-a numa ação de direito público, e estender também aos genitores dos pais os cuidados para com o recém-nascido; incentivar uma cultura nacional de solidariedade e apoio mútuo entre vizinhos e comunidades; melhorar a política atual de segurança pública; cuidar, por meio de uma reforma que vise a qualidade do ensino, para que as escolas se transformem em polos de atração da juventude, como já acontece em alguns países, como a Finlândia, e já aconteceu em São Paulo com os ginásios vocacionais; etc. Tomadas essas medidas, só resta aos gestores torcer para que os gestores seguintes mantenham ou aprofundem as medias tomadas, que não darão resultados do dia para a noite, ou apenas em uma ou duas gestões, pois propõem uma mudança básica na sociedade, em muitos de seus alicerces. Décadas talvez se passem até as cracolândias se transformarem numa longínqua reminiscência do tempo em que os brasileiros só queriam enxergar o seu próprio umbigo
__ Porém, muitos são os alvos em várias direções distintas, por onde começar? A qual desses problemas, ou grupo de problemas, deve-se atacar primeiro? Simples: faça-se uma ampla pesquisa entre os moradores da cracolândia, e busque-se saber qual é o fator que predomina na busca deles por esse tipo de vida, e analise-se com cautela o que o estado pode fazer para reduzir ou eliminar esse ponto fraco da estrutura social – numa linguagem de gestores, isolar o problema e colocar foco no item mais frágil do sistema, e que está impedindo que ele alcance o seu objetivo. É preciso levar a sério o que essa gente pensa, pois o que eles passaram e passam, ainda tão jovens, levaria muita gente adulta, que os julga com tanta pressa e desprezo, direto para o manicômio.
__ De imediato o estado precisa deixar bem claro que se interessa por essa gente pelo simples fato de eles serem humanos, seres com um potencial infinito de realização e atos bons pela comunidade em que vivem – considere-se o caso do morador de rua, na Inglaterra, que salvou várias pessoas num incêndio recente – merecedores, portanto de toda simpatia e torcida, da parte de todos, a fim de que consigam superar sua difícil situação, se for o caso.
__ Em segundo lugar o Estado, e mais ainda o governo, tem o dever, senão a obrigação, de mostrar para com eles toda a simpatia e interesse genuínos, pelo simples fatos deles serem brasileiros, e como tais portadores de direitos inarredáveis, em vista dessa condição, que nem deveriam ser lembrados, uma vez que antes desses direitos se impõe o imperativo moral de “amarmo-nos uns aos outros”.
__ Em terceiro lugar o Estado deve lutar com calma e resolução pela conquista e manutenção de cada espaço dentro das cracolândias, talvez por meio de um grupo de policiais especializados, capazes de enfrentar com força e autoridade qualquer iniciativa violenta dos traficantes, que se aproveitam dessa gente, evitando ao máximo, é claro, conflitos ou troca de tiros dentro das cracolândias, mas também serenos e capazes de ajudar a quem quer que esteja passando mal ou precisando de auxílio médico urgente – outra alternativa seria esses policias circularem dentro da cracolândia acompanhando, para proteger e auxiliar, a agentes de saúde. O objetivo dessa ação seria modificar a imagem da polícia na cabeça dessa gente, associada, não sem razão, a uma violência unilateral, de opressão classista (“só me agridem porque sou pobre!”), e por meio dela ganhar a confiança de muitos na cracolândia, que começarão a procurar os policiais para pedir orientação e ajuda para um tratamento. E assim, ganhando corações ementes, começaremos a ver um processo inverso, de diminuição, das cracolândias no Brasil.
__ E os traficantes, o que fazer com eles nas cracolândias? A primeira coisa é perceber que o que mais interessa a esses criminosos é a discrição, porque eles têm consciência que o que fazem é muito errado, logo é preciso que fique bem claro para eles e para todos que, toda vez que surgir uma cracolândia, em qualquer lugar do país, imediatamente serão instaladas câmeras de monitoramento, e equipes prontas para identificar e prender os bandidos na primeira oportunidade que houver. Transformar enfim o supermercado da droga numa atividade de risco para o tráfico, pela exposição dos traficantes.
__ Segundo, qualquer ação violenta deles a uma iniciativa da polícia deve ser respondida com uma chegada em massa da polícia, não para bater ou constranger os moradores do lugar, mas antes, de forma cirúrgica, com o intuito de investigar e prender a bandidos específicos, de sorte a lhes convencer que o pior para eles é crescer para cima das autoridades, tirando partido daquilo que acima de tudo pretende o tráfico: ganhar dinheiro, se possível negociando pacificamente a sua droga, como se fosse uma mercadoria qualquer – QUE NÃO É!
__ Por fim é necessário, e o Estado Brasileiro, nas três esferas de poder, também pode contribuir muito com isso, principalmente por meio do bom exemplo ético-moral de políticos e autoridades, resgatar ou criar valores e hábitos elevados de convivência e sociabilidade, adaptados à nossa realidade nacional, republicana e democrática, que abarquem, protejam, orientem e movam o indivíduo, as famílias, as comunidades e a nação, de sorte que não seja mais possível esperar tanto tempo antes de agir, diante do crescimento das cracolândias, como se a sorte dessa gente não nos interessasse.
__ As cracolândias são apenas um sintoma; sintoma de uma indiferença e de uma crueldade antiga, endêmica, selvagem, presente no nosso projeto primordial de nação, e assim como nós sabemos de sua origem, espero um dia saibamos de sua cura e a assumamos resolutos, ao invés de continuarmos a nos espatifar a cada investida contra esses moinhos de ventos.

__ Espero viver para ver isso...

sábado, 22 de julho de 2017

O PRECARIADO E A DESINVENÇÃO DO MUNDO

Prof Eduardo Simões

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__ Tive oportunidade em outro artigo, A mulher e a reinvenção do mundo, de ressaltar a importância do lar e tudo aquilo que ele representa como aconchego, segurança, proximidade, solidariedade familiar, e outras virtudes análogas, para o formidável desenvolvimento da humanidade ao fim da Pré-história, e nos períodos seguintes, em que pese as grandes dificuldades que o lar encontra em virtude de caos e conflitos criados nos espaços públicos, em geral por homens, como guerras, concorrências desleais, políticas econômicas desastrosas, etc.
__ Portanto, mudanças e movimentos ocorridos na área do espaço público, ainda que não tão graves como uma guerra, podem sim ameaçar a estabilidade de lares e, com isso da própria sociedade, à medida que compromete as fontes de sustento próprias de uma sociedade industrializada ou cria situações de estresse para o desenvolvimento tranquilo da família; no momento atual vemos isso acontecendo nas diversas formas de precarização do trabalho, à guisa de estimular o empreendedorismo, presentes na atual reforma trabalhista do governo Temer, a partir da cartilha “trabalhista” criada pelo PSDB de São Paulo – a aprovação dessa reforma mostra bem o tipo de entranhas desse governo: num momento aprova a reforma trabalhista e no outro aumenta os impostos; a mensagem é clara: o governo continuará saqueando as empresas, por meio de impostos, enquanto os empresários ficam liberados para compensar as perdas, esfolando um pouco mais a sua mão-de-obra. Em linhas gerais, é interessante notar como, a esse respeito, a história se repete.
__ No início do século XIX, disseminou-se nos meios mais cultos e entre o empresariado a tese de um pesquisador inglês, Thomas Robert Malthus – esmiuçada em seu livro Ensaio sobre o princípio da população, de 1798 – de que população cresceria sempre a uma taxa superior à da produção de alimentos, de tal forma que num futuro não muito distante, o descompasso entre a oferta de alimentos e a sobredemanda da população acabaria por arrastar as sociedades ao caos. Associada a essa tese, apareceu, anos mais tarde, uma conclusão um tanto forçada da teoria evolutiva de Charles Darwin, conhecida como “’darwinismo social”, que tentava apresentar as pessoas pobres, em geral a massa trabalhadora no campo e nas cidades, como os indivíduos “menos aptos” da espécie, e, portanto, o “ponto fraco” do edifício social; logo é preciso evitar que os pobres se multipliquem, sua pobreza denúncia sua “inaptidão natural”, ou como um aforismo muito popular na época: “a melhor coisa que você pode fazer por um pobre é não ser um deles”.
__ Na esteira dessas hipóteses espalhou-se, no meio empresarial, a prática de pagar os menores salários possíveis aos seus empregados, apenas aquilo que lhes permitisse minimamente sobreviver, seja por um lado, para evitar a explosão demográfica e o caos final da sociedade humana, previsto pelos malthusianos, seja para impedir que a sociedade nacional se enfraquecesse, perante outras nações, num momento de forte afirmação nacional e concorrência comercial em escala planetária, pela multiplicação dos “menos aptos”, justificado pelos argumentos de um dos economistas liberais mais brilhantes, David Ricardo, na sua chamada “lei férrea dos salários” – as colônias, nessa época, serviram muito também às metrópoles como destino final para esses “indesejáveis”, sem falar em duas guerras mundiais, que lhes reduziram bastante o seu número. Acrescentem-se às consequências dessa política a explosão das margens de lucro do empresariado e uma imensa concentração de riquezas, graças à exploração brutal da mão-de-obra! Hoje nós sabemos que tudo isso foi, e é, um engano: a explosão demográfica foi contida, a produção de alimentos multiplicada pelo desenvolvimento tecnológico e as teses racistas do passado não podem estar mais desmoralizadas. Mas quantos não pagaram, e pagaram muito caro, por esse erro?
__ Hoje, outra nova e brutal mitologia ameaça o futuro de muitos; daqueles que não vão herdar fortunas ou negócios milionários de seus pais, que precisarão trabalhar para se manter, uma vez que as novas formas de trabalho, a pretexto de liberdade e realização pessoal estão precarizando as relações trabalhistas, cortando ou enfraquecendo os vínculos dos empregados com sua empresa, gerando um ambiente de insegurança econômica e jurídica estrutural na sociedade. Usando a metáfora da Pré-história, e como se os caçadores induzissem o urso a entrar na caverna, onde estão mulheres, crianças e velhos, para, lá dentro, tentar abatê-lo. Quais são as chances de isso dar certo?

“Não leve problemas do trabalho para dentro de casa”

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__ Diziam os antigos, para manter o caráter do lar como lugar de descanso e reposição de energias  do guerreiro, nos dias de hoje coisa é vista de modo inverso: “não traga problemas pessoais para dentro da empresa”, pois o lar e a família perderam importância diante das possibilidades de lucro, ganhos e oportunidades a cada minuto que passa. Nada pode se perder, enquanto os antigos faziam seus cálculos deixando de lado a “parte das saúvas”, e por isso sofriam menos; mas não é só a tranquilidade do lar que está ameaçada pela “revolução” do trabalho em curso.
__ Por trás dessa nova “onda” está uma concepção de ser humano nascida nos laboratórios das universidades e centros de pesquisas, no início do século passado, que acirraram e sofisticaram a matriz psicológica do empirismo, passando pelo comportamentalismo até chegar ao behaviorismo, em que o móvel das ações humanas é colocado ao mesmo nível do de animais “irracionais”, cujo comportamento, estudado amiúde em diversas situações, serve como parâmetro para explicar o comportamento humano. Como no darwinismo social, a vida “bruta” é usada para definir e orientar o comportamento de animais pensantes e simbólicos, da complexidade de um ser humano. Para essa gente as nossas necessidades são apenas aparentemente diferentes da dos outros animais, e a nossa complexa afetividade algo perfeitamente descartado.
__ Por essa via transitam as últimas reformas de ensino feitas no Brasil, em São Paulo de uma maneira muito particular, a qual foi assumida pelo governo Temer, seja por crença sincera seja por necessidade política gerada pelo excesso de insinceridades, reforma essa baseada na presença compulsiva e exaustiva do aluno em sala de aula, durante dois expedientes, com salas absurdamente lotadas, onde a aprendizagem, à semelhança da hipertrofia muscular de um mamífero qualquer, é provocada pelo acúmulo de conteúdos absorvidos acriticamente, permeada com atividades físicas e culturais diversas, como que “molduras”, desconsiderando-se grosseiramente o caráter formativo, espiritual, das artes (vistas apenas como uma mercadoria, donde os manuais enfadonhamente descritivos), do esporte (visto como uma forma de “manter a saúde” e reduzir as despesas com a saúde pública, decorrente do sedentarismo que afeta os lucros das empresas e aumenta custos da saúde pública e dos planos de saúde privados), e da socialização, onde entram aspectos fundamentais da afetividade. Quem quer saber de dinâmica de grupos?
__ Por trás disso há um discurso bem articulado, simétrico ao do início do século XIX, embora com o mesmo objetivo, que é o da necessidade de criar um “capitalismo para todos” ou “desenvolver o empreendedorismo”; ou seja, forçar o ser humano a se adaptar às novas tecnologias, como no século XIX se lhe forçou a se adaptar ao maquinismo nascente, para gerar mais renda a quem já as tem sobrando! A lógica é mais ou menos a seguinte: “empreendedor é aquele que topa e gosta de correr risco; ora, se o patrão corre riscos, porque o empregado não pode correr também?” Apresenta-se ainda a suposta vantagem de o trabalhador, um dia, tornar-se um empreendedor, como o seu atual patrão, agora transformado em um sócio.
__ Numa perspectiva behaviorista, nada há com que se preocupar. Todos os ratos são iguais e reagem da mesma forma aos mesmos estímulos, e o mesmo acontece com os homens, logo estes podem ser treinados para se tornar empreendedores, em que pese as definições conflitantes desse construto social, assim como as formas como ele se manifesta na sociedade o ser bem-sucedido. Em muitas comunidades de periferias, por exemplo, o modelo de sucesso que atrai tanto rapazes como moças, por motivos diversos, são gente que as sociedades centrais, ou de nível sociocultural mais alto têm por “marginal”, sobre isso voltaremos a tratar mais à frente, que tal “sociedade” vai acontecer entre dois polos com poder de barganha desigual, onde um dos sócios tem gordura financeira para aguentar a espera por um sócio mais adequado, enquanto o outro, o ex-trabalhador, precisa o quanto antes iniciar-se numa atividade econômica que lhe possibilite garantir alimento, vestuário e moradia. Qual é a diferença dessa política daquela do início do século XX, quando os operários eram obrigados a trabalhar até 12-14 horas por dia, por patrões que diziam: “só trabalha na minha fábrica quem quer”!
__ Se a questão é ser um empreendedor, e isso vai se tornar quase obrigatório com a nova lei, surge uma questão que o Estado precisa responder e por a solução em prática urgentemente: como é que se forma, se é que existe uma fórmula infalível, um empreendedor? As escolas, em especial as públicas, estão fazendo movimentos nessa direção? O currículo de nossas escolas estimula a criatividade, virtude básica de todo empreendedor, ou busca respostas estereotipadas por meio de uma infinidade de testes de múltiplas escolhas e avaliações quantitativas, modelo PISA, mais adequadas a “burros de carga”? A metodologia usada na transmissão dos conteúdos em sala de aula favorece à problematização da matéria? Como ser empreendedor sem saber resolver problemas ou enxergá-los de maneira inovadora, justo o que não há em sala de aula? A quantidade de alunos em sala de aula favorece à formação de pequenos grupos homogêneos, semelhantes àqueles que  assessoram os empreendedores ou mais parecem latas de sardinha lotadas de alunos, com níveis de formação, e informação, completamente díspares? A organização das carteiras favorece à comunicação entre todos, vital no processo de empreendedorismo, ou segue as tradicionais fileiras de consumidores passivos engolindo acriticamente o discurso dos professor? Como fazer para que um aluno tímido, mas criativo, se sinta encorajado, em meio à multidão anárquica de seus colegas a se manifestar e enriquecer o grupo com seus talentos, como acontece num ambiente empreendedor? Que falar da motivação, elemento chave de todo empreendedor, fortemente ligada ao desenvolvimento da afetividade; o Estado se propõe a COMEÇAR a lidar com essa questão? Etc. etc. etc.
__ Mesmo supondo, behavioristicamente, que a educação é um sistema linear, e que os alunos se transformarão, como que magicamente, em empreendedores, se os professores os forçaram a ler os manuais de matemática financeira que inundam as escolas e ouvirem eventualmente palestras e projetos sobe o assunto, dadas por estranhos ao ambiente escolar, é claro, uma vez que os professores estão sobrecarregados de relatórios e planejamentos, sem falar da atenção a levas de alunos especiais, para os quais não receberam qualquer formação digna de nota, e os alunos com ligação com o crime organizado, em geral comércio de entorpecentes. É razoável desconsiderar a opção final do aluno que, a ser empreendedor, prefere sonhar com uma vida tranquila e pacata de trabalhador numa empresa? O que um patrão perde com a fidelidade e o empenho de seu empregado?
__ Bem, se o empreendedorismo for objetivo e não opção, falta acertar uma coisa com os principais interessados.

Melhor combinar antes com os russos

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__ Nossos políticos, os gestores do Estado, podem, escutando meia dúzia de intelectuais e empresários, que sempre se protegeram à sombra do Estado, desde o berço, na ditadura Vargas, até os bombásticos campeões de Luis Inácio Lula da Silva, decretar, por meio de lei, o fim do emprego estável ou a exaltação do “risco” para todos, tanto para os que lhe têm vocação, como os que lhe são avesso, pelos mais diversos motivos, alguns muito pessoais e profundos, que não podem ser abolidos de uma hora para outra por decreto ou lei votados de afogadilho por uma assembleia corrupta e desmoralizada aos olhos da nação, sem com isso querer dizer que tudo na atual reforma trabalhista é negativo, e que o modelo anterior precisava ser mantido em todos os detalhes. A paralisia leviana e oportunista da esquerda, sobre a atualização da legislação trabalhista, e a ganância da direita impediram um debate mais amplo e aprofundado sobre essa reforma, que agora nos desaba sobre a cabeça, e que vai mexer com a vida de milhões.
__ Ouvir de empresários e nossos políticos afirmarem que essa reforma vai melhorar a situação dos trabalhadores, que vai gerar mais emprego, a revelia das condições atuais do trabalho e dos trabalhadores em nossa sociedade, dá-nos tanta confiança nisso quanto suas juras de que são inocentes dos crimes a eles imputados, e nos obriga a ficarmos ainda mais atentos ao perigo que representa, para o Brasil e para o mundo, essa sensação generalizada de uma falta de uma segurança mínima, cotidiana, que só o trabalho com carteira assinada e direitos estáveis pode trazer, exceto para aqueles vocacionados para o risco, e que parece ser um traço comum a muita gente, independente das características ou do momento econômico da sociedade em que vive.
__ Na Inglaterra, um pesquisador universitário, Guy Standing, causou uma certa apreensão ao lançar o seu livro Precariado: a nova classe perigosa – no sentido que ela substitui, no ambiente europeu, a vertente revolucionária do antigo operariado marxista, sempre pronto para por o dedo na ferida da burguesia – uma vez que essa classe surge justamente do ambiente de incerteza que cerca a fórmula do “capitalismo popular” ou “empreendedorismo difuso”, imposto de cima para baixo, criando em jovens de classe média, de excelente formação acadêmica, a sensação de que estão permanentemente fora do jogo, que nunca terão um emprego fixo em suas vidas, logo terão que ficar eternamente disponíveis para trabalhar ora em seu país ora no exterior, obrigado a se adaptar, de um momento para o outro a costumes e línguas diferentes da sua, se quiser sobreviver! Ter uma residência fixa? Nem pensar! Formar família? Vai sonhando! O que está ocorrendo, bem o assinala Standing, não é a proletarização da classe média, mas a sua lumpemproletarização, a semelhança dos trabalhadores diaristas, chapas, boais frias e outros, vagando sem identidade ou um projeto de vida permanente, apenas pela oportunidade de continuar vivendo, jogados de um lado para o outro – o trabalhador regredirá à mesma condição dos primeiros caçadores errantes do Paleolítico, sempre a busca de emprego, num mundo onde o trabalho com carteira será cada vez mais escasso e exaustivo, enquanto a aposentadoria ocorrerá cada vez mais tarde, em que pese a deterioração da mente e do corpo, acelerados pelo estresse da busca por emprego e a insegurança onipresente.
__ O resultado disso é a grande sedução, já observável em jovens europeus, por doutrinas e promessas “radicais” ligadas a um passado, que ao menos lhes dá uma esperança de estabilidade e antigos valores, em geral expressas por políticos populistas, demagogos, oportunistas, a revelia daqueles que ainda não tomaram consciência da perigosa transição que nos cerca, visível no crescimento tanto da direita nacionalista, conservadora, e da esquerda “revolucionária” em vários países da Europa, como a Frente Nacional e as explosões sociais na França, a vitória do espalhafatoso Brexit, na Inglaterra, fortes manifestações anti-imigração, a vitória de Donald Trump na EUA, a situação de quase levante criada na Alemanha por ocasião da cúpula do G 20 – a esse respeito a mídia noticiou que a polícia alemã vai recrudescer a vigilância sobre a extrema-esquerda no país, exatamente o que se fazia há 200 anos atrás, nas primeiras manifestações obreiras na Europa! Combatem-se os sintomas, ignoram-se as causas.
__ Nem todos são empreendedores, não é para qualquer um; ao contrário do que dizem os defensores desse novo sistema, a via empreendedora é muito difícil, veja-se pois o depoimento do empresário e escritor Eduardo Moreira, um empreendedor de sucesso, em um de seus artigos (leia-o completo neste blog): “Mal sabemos que o fracasso é a regra e o sucesso a exceção... Na verdade, com uma competição muito maior e barreiras de entrada quase inexistentes [possibilitada pelo avanço tecnológico e a queda das barreiras comerciais], a maior parte dos negócios passou a ser mais difícil e não mais fácil de dar certo. Dar certo será sempre o resultado de errar, errar, errar, até se exaurir todas as possibilidades que não dão certo e só sobrar a que funciona...” Quantas pessoas têm esse espírito? O que fazer com as que não têm? Quantos abrigos públicos serão necessários abrir para estas? Quantos se submeterão passivamente à ideia de que são fracassados, perdedores, e que não lhes resta nada mais que esperar o fim de seus dias vivendo da caridade de quem está sendo treinado para não ter caridade, uma vez que o emocional não interessa? É justo criar um sistema econômico em prol de uma minoria ou mesmo de uma maioria, apenas?
__ Jovens de todas as classes sociais, em especial os das nossas periferias, com formação precária ou sem vocação para o empreendedorismo, certamente dirão para si: “tudo bem, me submeterei à pobreza e a humilhação cotidiana para que os políticos possam continuar se elegendo e ricos empresários se tornem ainda mais ricos, explorando a mão-de-obra terceirizada, sem qualquer proteção, como eu, pelo bem da sociedade, que historicamente nos desprezou”. Em dezembro, aproveite, e espere uma visita de Papai Noel...
__ Não podemos esquecer que a lei da sobrevivência, e sobrevivência com dignidade, sempre se impõe, e para cada não dado a um trabalhador por um empresário, com base nessa lei, haverá um revolucionário na esquina a lhe destilar o ódio de classe ou um traficante pronto para recebê-lo de braços abertos, sem qualquer exigência ou condição prévia, exceto o da fidelidade, que a empresa e o governo lhe negam, jogando sua autoestima nas alturas, a ponto desfilar airoso, na sua comunidade, portando uma arma, como um soberbo caçador, à vista todos. Se não passar de um pequeno um vendedor, ainda assim terá direito à solidariedade de seu grupo na adversidade, sem falar da tranquilidade de saber que a dura lei do tráfico vale para todos, ao contrário do que ocorre na sociedade civilizada onde há foro privilegiado e a diferença entre advogados pode fazer a diferença na punição. Explique isso para um jovem pobre numa escola!
__ Por fim, se tudo der errado, haverá sempre uma cracolândia por perto, assim como um trabalhador “otário”, de quem se pode roubar algo, ou bens públicos à mão, para trocar pela ração diária de drogas, já que a de comida decente ficou inviável. As cracolândias são espaços absolutamente livres e democráticos, expressão máxima do individualismo amoral burguês, gestado tanto pela necessidade de sobrevivência dos esquecidos como pela frieza dos esquecedores em nossa mísera história social.

__ Estamos construindo, ou deixando construir, meticulosamente, um inferno para as futuras gerações. É hora de acordar! 

sexta-feira, 21 de julho de 2017

UM MUNDO DE INFORMAÇÕES VELOZES E PESSOAS TRISTES
Eduardo Moreira

[nessa postagem reproduzo um artigo muito interessante e provocativo do jovem empresário e escritor de sucesso e meu xará, Eduardo Moreira, copiado do site de exame.abril.com .br, a quem agradeço muito. Espero que ele também inspire a você que está lendo esse blog]

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http://www.opopular.com.br

Vivemos em um mundo assustadoramente veloz. As informações nos chegam cada vez mais rapidamente e em uma quantidade avassaladora. Estima-se que uma pessoa “conectada” receba atualmente mais informações em um dia do que seus antepassados recebiam durante toda uma vida. Mas não é só o acesso a informação que foi democratizado; a produção dela também foi.
Com um smartphone à mão e uma ideia na cabeça, o mundo passou a ter um contingente de bilhões de repórteres e jornalistas, a maioria deles sem qualquer compromisso com a verdade ou com as consequências daquilo que publica. E é esse mundo, em que as informações e notícias são consumidas com cada vez menos profundidade de análise, que está deixando as pessoas cada vez mais ansiosas e frustradas.
Há algumas décadas as pessoas eram capazes de manter sua atenção focada por quase uma hora, em média, num mesmo assunto antes de perder-se em outros pensamentos. É por isso que as aulas dos colégios, das faculdades, as palestras e as sessões de terapia têm essa duração. Com a avalanche de informações e o aumento do custo de oportunidade de fixar a atenção em uma só coisa – e perder uma infinidade de outras coisas que acontecem enquanto isso – esse tempo foi diminuindo. Hoje, estima-se que seja de cerca de 8 segundos apenas. Não é coincidência que as propagandas do Youtube demorem 7 segundos (em um de seus modelos mais populares à venda para anunciantes).
Nesse mundo, chocar ou prometer milagres já nas primeiras linhas de um anúncio ou nos primeiros segundos de um vídeo parece ter se tornado a estratégia mais utilizada para fisgar as pessoas. E é por isso que as “fórmulas de lançamento” que prometem deixar as pessoas ricas em uma semana, os produtos de beleza que acabam com celulites ou rugas em poucos dias, e os cursos de idiomas que te fazem fluente em poucas semanas são o hit do momento. Ótimos somente para quem os vende.
Do outro lado do balcão estamos nós, os consumidores. Que fazem à risca o que mandam as fórmulas anunciadas e, contrariando nossas esperanças e expectativas, seguimos colecionando fracassos atrás de fracassos em nossos negócios, rugas e mais rugas em nossos rostos, e mal conseguimos pedir um Big Mac sem picles em inglês após dois meses de curso.
Pior ainda, somos bombardeados com os raros casos de pessoas que deram certo usando estes métodos ditos “milagrosos”, veiculados a torto e a direito pelos charlatões de plantão, e passamos a achar que o problema somos nós (e não essas levianas promessas). Deprimimos-nos, humilhamos e escondemos do mundo, convictos que somos um erro e nossas vidas um desastre sem solução.
Mal sabemos que o fracasso continua sendo a regra e o sucesso, a exceção. Mesmo para os que seguem à risca as fórmulas milagrosas. A verdade é que estas pessoas não têm nada de errado além do fato de acreditar que os resultados passaram a acontecer na mesma velocidade das informações que os prometem. As coisas continuam demorando para dar certo, muito mais do que 7 segundos.
Na verdade, com uma competição muito maior e barreiras de entrada quase inexistentes, a maior parte dos negócios passou a ser mais difícil e não mais fácil de dar certo. Dar certo será sempre o resultado de errar, errar, errar, até se exaurir todas as possibilidades que não dão certo e só sobrar a que funciona. Para isso é preciso resiliência e paciência, características cada vez mais raras nesse nosso mundo frenético e imediatista.
As flores seguem nascendo na primavera, o sol ainda se põe uma vez por dia e os bebês continuam passando nove meses dentro das barrigas de suas mães antes de nascer. Para dar certo no mundo de hoje, você ainda vai ter que fazer muito e esperar mais ainda. A não ser que queira enganar os outros vendendo as suas fórmulas milagrosas (que não funcionaram para você).
[leia, abaixo, essa matéria publicada no g1.globo.com, a quem agradeço, postada em 2015, complementando o que foi dito acima por Eduardo Moreira]

Olhar o Facebook dos outros pode nos deixar mais tristes?
Pesquisas apontam que observar atividades e fotos de conhecidos ou famosos de forma passiva pode afetar negativamente nosso bem-estar e provocar sentimentos como inveja.
Paula Adamo Idoeta
Da BBC Brasil em São Paulo

Amigos postando fofocas de festas animadas das quais você não participou; conhecidos registrando em fotos uma viagem para algum destino paradisíaco; celebridades mostrando seu cotidiano de luxo e agito. Se você passa seu tempo observando, passivamente, esse tipo de conteúdo no Facebook talvez já tenha experimentado uma sensação de tristeza.
E não está sozinho. Alguns estudos têm mostrado como a rede social pode afetar negativamente nosso bem-estar e provocar sentimentos como inveja.
Uma recente pesquisa da Universidade de Michigan (EUA) com a Universidade de Leuven (Bélgica), publicada no Journal of Experimental Psychology: General, analisou 84 estudantes universitários, que foram instruídos a usar o Facebook por dez minutos dentro de um laboratório e, em seguida, responder um questionário a respeito de suas emoções.
E os que usaram o Facebook passivamente, meramente observando as atividades e fotos de seus conhecidos ou pessoas famosas, se sentiam significativamente mais tristes e mais invejosos ao longo do tempo.
"Sabemos que a vida nos traz dificuldades; nos sentimos bem e nos sentimos mal. Se você está constantemente vendo como a vida das outras pessoas vai bem, vai se sentir pior quanto a sua vida (porque), em comparação, ela parece não ir tão bem", explica à BBC Brasil o professor associado de psicologia Ethan Kross, coautor do estudo na Universidade de Michigan.
O jornal The New York Times chamou atenção para o fenômeno no recém-terminado verão americano, em meio às milhares de postagens de celebridades nas redes sociais exibindo suas glamourosas rotinas, em fotos de corpos perfeitos, cenários deslumbrantes e companhias igualmente famosas.
A ponto de ter sido popularizada a hashtag "medo de estar perdendo" ("fear of missing out" em inglês, ou #FOMO), usada nas redes sociais por pessoas chateadas por não estarem aproveitando as férias com a mesma aparente intensidade.

Versão 'editada'
Mas a verdade é que poucos estão. É preciso lembrar que as redes sociais mostram uma versão "editada" de nossas vidas.
"Quando as pessoas postam no Facebook e redes sociais, tendem a postar coisas boas, como fotos bonitas delas em férias. Se você está usando passivamente o Facebook, o que você vê constantemente são esses acontecimentos positivos das vidas dos outros que não são um retrato fiel de suas vidas nem de suas rotinas", explica Kross.
"Todos fazem de tudo para mostrar o seu melhor (na rede social). Quem teve um dia absolutamente banal não vai contar no Facebook", agrega Luli Radfahrer, professor-doutor em Comunicação Digital da ECA-USP e consultor em inovação digital no Brasil.
Para ele, o Facebook substituiu a TV em termos de consumo passivo e pode fazer as pessoas perderem seu referencial.
"Se você vê sempre todas as pessoas muito felizes enquanto você está se sentindo frágil por qualquer motivo, aquilo vai deixá-lo triste - é instintivo. É como se você estivesse constantemente cercado por um grupo de pressão, que só te mostra o que faz de melhor", diz.
As conclusões de Kross e sua equipe têm algumas semelhanças com uma pesquisa de 2012, da Universidade Utah Valley (EUA), com 425 estudantes universitários, que indicava que usuários de Facebook por períodos mais prolongados acreditavam que as outras pessoas eram mais felizes e tinham uma vida melhor do que a deles.

Uso ativo
O pesquisador americano acredita que efeitos similares possam ser observados no Instagram, ainda que não necessariamente nas demais redes sociais, como o Twitter.
E, de volta ao Facebook, a pesquisa de Kross não identificou queda no bem-estar das pessoas que usavam a rede social de forma mais ativa, ou seja, produzindo informações, conversando com outras pessoas, postando links e interagindo com os demais usuários.
Basicamente, o nível de bem-estar dos usuários ativos se manteve estável.
Agora, Kross e seus colegas querem estudar que tipo de uso da rede social melhoraria o humor e a autoestima dos internautas.
"O uso ativo - além de não impactar seu humor - pode ter outros efeitos positivos, como manter as pessoas informadas sobre o que está acontecendo em sua vida social e manter contato com as pessoas, o que traz vantagens para famílias, carreiras. Quanto a como ampliar as emoções positivas (no Facebook), vamos investigar", diz.
Sua pesquisa aponta, também, que quanto mais as pessoas interagiam diretamente umas com as outras "off-line", mais seu humor melhorava ao longo do tempo.
Para Luli Radfahrer, uma forma de se proteger da tristeza causada pelas redes sociais é tentar ao máximo tomar consciência dos efeitos que elas provocam.
"O Facebook é algo novo e intenso. Primeiro, precisamos aprender a relativizá-lo em relação a seu ambiente social e seu conteúdo. Como muita gente moveu seu grupo social para dentro dele, o perigo é que passem a acreditar que o que acontece ali seja um retrato fiel do que acontece na vida real", opina.

"E se você se sente mal (com os estímulos recebidos das redes sociais), uma sugestão é largá-las por um tempo, tirar um período sabático."

terça-feira, 18 de julho de 2017

A MULHER E A REINVENÇÃO DO MUNDO

Prof Eduardo Simões

http://www.abc.net.au/news/image/4679230-3x2-940x627.jpg
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Forja de civilizações

__ “A necessidade é a mãe das invenções”, dizem alguns, enquanto outros preferem dizer que “a necessidade faz o homem”. Discordo de ambos, antes acredito que o lar é quem faz o homem e cria as condições ideais para o avanço tecnológico, enquanto a mulher, fundadora originária do lar, é não só a mãe, mas a principal formadora de homens, justamente porque estar nele, mas não é só isso...
__ Não importa quem foi o primeiro a descobrir a funcionalidade da caverna ou de qualquer outro abrigo fixo, protegido das intempéries do clima, tirando a homens e mulheres da exposição permanente aos grandes predadores nos espaços abertos das savanas, pois de nada adiantaria a ida para as cavernas se não houvesse alguém para tornar habitável essa nova conquista. Entregues apenas aos caçadores, em seus momentos de repouso, elas em breves se tornariam grandes lixões ou algo parecido, como algumas repúblicas de jovens universitários, pois o embate quase diário com grandes predadores, para não falar de confrontos com grupos humanos rivais, que eventualmente invadiam sua área de caça, por inadvertência ou de propósito, devia gerar, entre os sobreviventes, uma porção de estresse, cansaço, prostração, nada desprezível. Mas homens e mulheres não se internaram em cavernas e abrigos apenas com membros e armas tão rústicas; acompanhava-os uma descoberta formidável: a produção e a indispensável, a estratégica, conservação do fogo.
__ O fogo era uma “mão na roda” quando se tratava de despejar os primitivos proprietários dos logradouros rochosos mais desejáveis, entre eles se encontrava o formidável urso das cavernas (Ursus spelaeus); e não só expulsá-los, como também mantê-los a uma distância segura. A caverna, graças ao fogo, em geral produzido por homens por meio de fricção, tornou-se um lugar seguro, mas foi a mulher que, organizando e mantendo habitável o seu interior, inclusive cuidando da manutenção do fogo, transformá-la-á em um lar, melhorando as suas condições e a de sua família, e ampliando consideravelmente as chances de sobrevivência da humanidade. Agora, ao concluir sua incursão na área de caça, tendo se defrontado em campo aberto com terríveis predadores e grandes herbívoros, igualmente mortais, um grupo de caçadores pode, ao retornar à caverna de seu grupo, encontrar um lugar seguro, iluminado, aquecido, limpo e confortável, para os padrões do paleolítico. Aí os aguradam, ansiosos, outros membros de seu grupo, com os quais mantém relações muito estreitas, membros de sua família: ascendentes, descendentes, contemporâneos, em geral mulheres, crianças e velhos. Ao redor da fogueira, saboreando o resultado do trabalho de todos, como a carne da caça e os frutos da coleta, conversarão sobre os sucessos do dia, como que em uma catarse coletiva, numa distensão geral, enquanto observam com mais cuidado as qualidades e os defeitos daqueles que lhe são mais próximos. Do local onde ardia o fogo doméstico, com tudo o que ele representa de “familiar”, e que na nossa língua se chamará “lareira”, evoluirá o termo “lar”, um paraíso privado, construído por mãos humanas.

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Caos no espaço público

__ Ocorre então, por força desse ambiente, uma verdadeira revolução psicológica; os laços afetivos se aprofundam, ganham extensão e se diversificam, hierarquizando sua intensidade preparando o homem para mais um invento formidável: a família nuclear, capaz de gerar, nas mais variadas direções, um nível de motivação que, por vezes, nem o instinto de sobrevivência consegue superar. Agora ali, na tranquilidade de seu lar, solidamente ancorado na sua afetividade, esse homem pode se dedicar ao invento de novas ferramentas, além de aperfeiçoar as antigas.
__ Muitos falam que o grande disparador do sucesso da humanidade, uma espécie animal tão frágil que, observada em sua origem, seria vista como condenada a disputar, com pequenos roedores e vegetais, os nichos mais elementares da cadeia alimentar, teria sido a posição ereta, que liberou as mãos para o fabrico das ferramentas ou ainda o fogo, que lhe deu poder sobre todos os outros animais, sua fonte mais abundante de proteínas, etc. Para mim, sem ignorar a enorme importância dos momentos anteriores, o grande evento evolucionário, que marcou definitivamente a passagem de um estado de “barbárie” e indiferenciação, para um estágio civilizacional flexível e diversificado, com um potencial tecnológico formidável, foi a invenção do lar; uma espécie cápsula de sobrevivência complexa e sutil, ao mesmo tempo material e psicológica, desenvolvida pela ação das mulheres lá na pré-história.
__ Percorrendo a evolução dos primeiros estágios da humanidade, vemos, no Paleolítico Superior, homens e mulheres a vagar indiferenciados em pequenos bandos nômades, ocupando precários abrigos temporários, dedicando-se ambos às mesmas atividades (coleta, caça pequena e necrofagia), a evolução se dava então muito lentamente – os primeiros artefatos tiveram que esperar centenas de milhares de anos antes de apresentarem melhorias apreciáveis. Nessa época homem e mulher só tinham uma preocupação: pegar o máximo de alimento que pudessem e escapar do ataque de predadores circundantes, provavelmente subindo numa árvore. Sua única proteção corporal era a densa camada de pelos que envolviam um corpo frágil, com 30 a 40 quilos de peso e pouco mais de um metro de altura. Não passavam de pequenos macacos esquisitos, com uma mania incurável de estar sempre buscando coisas no chão.
__ Nessa época, em que fêmeas e machos competiam e cooperavam pelas mesmas tarefas, não se viu nenhum progresso apreciável nas comunidades humanas, da mesma forma que machos e fêmeas de outros primatas antropoides parecem não sentir o tempo passar. Quando as comunidades humanas passaram a realizar uma certa divisão de tarefas, elas deram, sem o perceber de início, o “pulo do gato”, e geraram condições para as revoluções que se seguiram – erram muito, portanto, aquelas ou aqueles que veem a internação da mulher nas cavernas como uma imposição unilateral dos homens, numa demonstração gratuita de força, como se fora uma “prisão”, ou um processo, ainda que inconsciente de “domesticação” ou “dominação” da mulher, enquanto o homem ficava com a “liberdade” dos espaços públicos.

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Adão e Eva no paraíso.

__ A tranquilidade gerada pela organização do lar também beneficiou a mulher, uma vez que a sua contribuição à alimentação do grupo, a coleta de frutos silvestres, agora se dava em áreas cada vez mais amplas, livres de predadores, afastados pelo fogo ou abatidos por armas cada vez mais eficientes que estavam sendo desenvolvidas, o que não só ampliou o montante da coleta como permitiu-lhe, por meio de atenta observação e classificação, descobrir o ritmo e as condições ideais de maturação das sementes. Está cada vez claro que devemos às mulheres a descoberta da agricultura, resolvendo o problema da escassez crônica de alimentos, própria dos grupos nômades de caçadores e coletores.
__ Mas a situação geral das comunidades, já melhorada, ainda não era a ideal, uma vez que não havia ainda uma fonte de proteína animal que saciasse as necessidades alimentares globais do grupo. Seja como for, mais uma vez a precariedade das situações de caça ou confrontos com outros grupos, com o desfile de tragédias dele decorrente: longos períodos de afastamento dos homens, membros quebrados, gente devorada ou morta em acidentes de caça ou conflitos, doenças estranhas trazidas para dentro da família, etc. provocaram o gênio feminino a encontrar uma solução. E ela veio na forma de domesticação dos animais.
__ Durantes as caçadas, filhotes, a quem não interessava abater por seu pequeno porte, eram trazidos para a comunidade, provavelmente até como um troféu ou alguma finalidade mágica – submetê-los a rituais que permitissem de alguma forma controlar, à distância, os membros maiores daquela espécie, o que era do interesse dos caçadores – acabavam por se integrar forçosamente ao grupo. No convívio das pessoas da comunidade, principalmente mulheres e crianças, foram feitas observações valiosas sobre o comportamento desses animais, isolando e aprimorando aqueles cujas características mais interessavam ao grupo, e assim, paralelo à domesticação das primeiras espécies agricultáveis surgiu a domesticação e a criação de animais para trabalho e corte, descoberta também feita pelas mulheres. No convívio com animais e plantas, as mulheres, principalmente, puderam observar melhor o efeito da ingestão delas nos animais e em pessoas – algo semelhante era feito, de forma muito mais esporádica e em piores condições pelos caçadores, no seu campo de caça – o que lhes permitiu descobrir e aprofundar o conhecimento da farmacopeia natural (Paulo Freyre fala sobre isso, quando trata dos saberes da mulher indígena no seu Casa grande e senzala).
__ A mulher seguia expandindo as possibilidades de sua formidável célula de sobrevivência, oferecendo ao homem, de maneira muito mais fácil, aquilo que ele a duras custas pegava na natureza. A invenção do lar revolucionará a própria evolução, e nada é mais correto e apropriado do que falar em uma Revolução Neolítica, englobando a agricultura, o pastoreio, a cerâmica e a tecelagem, além da ideia de um mundo sobrenatural, capaz de estabilizar ainda mais o mundo real, já apontando para as grandes civilizações, aquela em grande parte devido à intervenção da mulher. Foi a invenção do lar, organizado e hierarquizado pela mulher, que deu substrato e possibilitou a espantoso e rápido progresso civilizacional do homem primitivo, que alguns fantasiosos preferem creditar a extraterrestres, mas que os antigos, que não o ignoravam, agradecidos expressaram esse fato na forma de elaboradas estatuetas femininas, as “vênus pré-históricas”, sem paralelo na representação masculina da época. A mulher, enquanto gênero, ganha status de “deusa” de ser extraterrestre. 
__ É interessante observar o quanto disso transparece no mais célebre mito criacionista do mundo: o de Adão e Eva. Eva fala com um animal, a serpente, como se faz num processo de domesticação, da mesma forma que é ela quem apresenta o fruto da arvore, a agricultura, para Adão comer. Pelo texto, parece que Eva foi a primeira a sucumbir e que, na sua queda, arrastou o homem, aparentemente o mal entrou no mundo pelas mãos da mulher, mas mesmo abstraindo a possibilidade desse mito ser criado num ambiente pastoril, que temia e odiava, com razão, os povos agrícolas dos vilarejos do Oriente Médio do segundo milênio antes de Cristo, a promessa de superação desse erro é feita à mulher e não ao homem, e condena o homem à agricultura, prevendo-lhe a perda de sua liberdade de caçador, a mesma que supostamente desfrutava no Jardim do Éden. Entretanto, contrariando esse início, aquele que veio reciclar a humanidade desde Adão, Jesus Cristo, tomará da agricultura a maioria dos termos que explicam a sua concepção de “Reino de Deus”. Seria o mito de Adão e Eva um relato poético não do início da humanidade propriamente dita, mas da descoberta da família nuclear, da união monogâmica (“no princípio não foi assim”)?
__ Bem, a estrutura estava montada principalmente, embora não exclusivamente, pela mulher, para que a humanidade se organizasse em pequenas comunidades agrícolas, pacíficas, sustentáveis, alimentadas pela solidariedade grupal. As aldeias, fortemente vinculadas por laços parentais sanguíneos. O conceito de família pode ser considerado como uma extensão inevitável do lar, que aos poucos se expande para ocupar áreas públicas cada vez maiores; e surgem as aldeias. Nas aldeias, espaço ocupado por uma família expandida, a tribo, representa um momento de transição da caverna para a cidade, mas talvez seja justamente nesta expansão que ela começa a perder, a ver diluído o seu caráter de “lar”.
__ Ao mesmo tempo em que a comunidade humana vivia a abundância de alimentos de origem animal e vegetal, observava-se o desenvolvimento de armas cada vez mais eficazes, tanto para a caça como para a pesca – poderíamos citar o arco e a flecha e o propulsor de azagaia ou estólica, a rede de pesca, etc – afastavam qualquer possibilidade de reação bem-sucedida por parte das presas, fosse qual fosse o seu tamanho ou periculosidade, exceto em casos de acidentes, levando algumas delas a serem extintas nesse processo. Mas se a caça já não apresentava desafios do passado, em virtude do poder advindo da posse de ferramentas tão eficientes, criadas tanto pelos caçadores no recesso tranquilo de um lar regiamente abastecido, como por artesãos hábeis e especializados, sustentado pelos excedentes gerados pela agricultura e o pastoreio, novos desafios surgem apresentados pelo comércio, feito a partir de excedentes agrícolas, pastoris e artesanais, uma nova possibilidade se abre, a saudosistas e conservadores, ciosos de seu status de “caçadores”, ao tomar conhecimento, por meio do comércio, das possibilidades de comunidades vizinhas: “por que, ao invés de nos desgastarmos, perdendo tempo e recursos, para criar nossos animais e colher nosso plantio, e ainda termos que disponibilizá-los, em demoradas negociações com nossos vizinhos, para adquirirmos matéria-prima ou artefatos que só eles fabricam, não vamos lá e pegamos isso tudo à força?” Se certo político brasileiro vivesse nesse período ele decerto afirmaria: “isso, sim, é coisa de homem!”

http://i.dailymail.co.uk/i/pix/2016/06/07/23/350410D300000578-3630238-image-a-18_1465337312425.jpg
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Vencida a natureza, submetidos os predadores, o macho transforma o espaço público num inferno; um inferno mundial!

__ À medida que as ações bélicas, ligadas muito mais a questões de prestígio representado pela ostentação de um poder ou de uma força, de caráter tipicamente masculino, envenena as relações das primeiras comunidades humanas – o primeiro assassinato descrito na Bíblia envolve dois homens e uma questão de prestígio – o estresse da caça, que antes ameaçava a integridade do primeiro lar, agora é substituído pelo estresse da guerra intermitente, mas contínua, uma das mais “relevantes” contribuições masculinas à sobrevivência da humanidade, e de tal forma a impregnou que um dos aforismos mais aceitos e persistente nas civilizações ocidentais é: “se queres a paz prepara-te para a guerra!” Essa foi uma grande vitória do patriarcalismo belicista tradicional e a derrota de um projeto original, feminino, que se desse certo transformaria o mundo num gigantesco lar, cercado por um jardim de delícias. O conceito de civilização nasce, pois, marcado pelo medo, pela possibilidade da guerra repentina, que seria tanto mais presente e ameaçadora quanto mais criativa, abastada e esplendorosa fosse a civilização derivada do trabalho de homens e mulheres. Não é mais o fogo privado da caverna que mantém homens, mulheres e crianças abrigados, seguros e afetivos no recesso do lar, mas exércitos postados em fronteiras distantes, e até no exterior, que dão aos grupos familiares do estado moderno a falsa ideia de segurança, que o crime comum, nos países subdesenvolvidos, e os terroristas, nos mais desenvolvidos, ameaçam a cada momento. Nesses grupos familiares onde homens e mulheres se esforçam e se esfalfam para provar quem é o melhor e mais merecedor de prestígio, a partir de parâmetros quase exclusivamente masculinos, pouco importa que em algum lugar distante do planeta, um artefato de chamado “Mãe de todas as bombas”, numa afronta ao que há de mais exclusivo na mulher criadora de vida humana, destrói tudo que é vida em um largo espaço, com direito a filmagem, reprise e comemoração. O fracasso completo do projeto feminino para a humanidade, que só será maior quando todas as atividades ligadas à guerra forem exclusivamente ou majoritariamente realizadas por mulheres.
__ Fazendo uma breve conclusão, podemos dizer que, depois de garantir os alicerces civilizacionais, a mulher foi segregada ao ambiente doméstico numa posição ambígua, que variava de civilização a civilização, conforme a sua cultura lidasse com essa questão com mais ou menos “abertura” – não está claro para mim, que houve uma conspiração consciente do “macho”, passível de ser generalizada a todas as mulheres do mundo, independentemente da cultura, mas antes que homens e mulheres, ao adentrar ao estágio civilizacional, perderam elementos psicológicos e sociológicos importantes do período anterior, e ambos tombaram vítimas do medo generalizado que se criou da expectativa de guerras sempre presente, e que nessa derrocada teve maior peso a interferência do elemento masculino, pelo menos pelo que sabemos ou julgamos saber sobre a evolução das sociedades ocidentais.
__ A guerra é a antievolução, a involução. Muitos, entre os tradicionalistas e conservadores, alegam que ela aprimora o caráter, torna o homem mais valente e mais rijo para os confrontos da vida e da luta pela sobrevivência, inclusive quando na necessidade de proteger os seus do ataque covarde de agressores, alegando ainda que na guerra, premida pela necessidade, a inteligência humana trabalha muito mais intensamente, gerando grandes saltos tecnológicos. Entretanto há um grande engano em tudo isso. Em primeiro lugar as autoridades militares fazem o possível para equipar o seu exército com as melhores armas e o melhor material humano possível, portanto tem mais interesse em convocar os mais inteligentes e saudáveis jovens da nação, ou seja, justo o que há de melhor ou de mais promissor; segundo, na hora do combate, aqueles que já possuem, trazido já de casa, de sua longa convivência com os parentes, principalmente a mãe, um caráter firme e honesto, decerto não recusarão, antes se apresentarão, para a missões mais difíceis e perigosas, ao contrário dos covardes e maus-caracteres, que farão o possível, e até o infame, para se safar, e que por isso terão muito mais chances de sobreviver que os primeiros. Que dizer de ferimentos, incapacitação, excessos de toda natureza, que homens bons se vêm forçados a fazer ou a “fechar os olhos” pelas contingências da guerra? Quantos inventos, descobertas, obras de arte, poesia, literatura, exemplos de vida, não terminaram os seus dias revolto na terra dos campos de batalhas, onde gerações e mais gerações, do que havia de melhor entre os povos, foram entregues à morte precoce? E por quê?

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Um trágico engano.
  

__ Ao sair de casa para assumir cada vez mais os espaços públicos, lugares hoje de guerras, conflitos, simulações e violências variadas, a mulher pode dar uma contribuição inestimável e extremamente necessária ao aprimoramento da humanidade, à melhoria do mundo, mas antes ela terá que fazer uma escolha crucial entre duas alternativas: primeira, sair para competir naquilo que os homens já fazem e provar que ela é a “mulher-maravilha”, pela exacerbação do que há de pior no masculino; segunda, resgatar algo perdido lá no fundo da caverna, da experiência muitas vezes milenar da humanidade, projetando para fora do ambiente familiar o conceito de mundo e de humanidade como uma enorme família, feminilizando e fecundando a Terra outra vez, transformada agora em um único lar, um lar mundial para todos, homens e mulheres, um lugar, enfim, onde não pareça insensatez desejar uma vida mais longa.