segunda-feira, 21 de agosto de 2017

A ESCOLA DESUMANA DE SÃO PAULO

Prof Eduardo Simões


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__ Quando notei essa aluna pela primeira vez em sala de aula, chamou-me a atenção o seu ar acentuadamente infantil para uma aluna de 6º ano, com seus dez para onze anos, reforçado pelas inúmeras vezes em que a surpreendi falando e brincando com seus objetos de estudo: lápis, caneta, borracha, apontador, etc. como se fossem seres animados, assim como fazem as crianças de 3 a 5 anos, dando vida a coisas inanimadas – o grande Piaget chamava isso de simbolismo, próprio de uma causalidade ainda “animista”.
__ Sua defasagem chamou-me a atenção e dirigi-me à coordenadora e diretora para saber se havia algo, fora o habitual de minha profissão e do currículo oficial de nossa escola (pública), que pudesse ser de ajuda a essa “criança”. Para “variar” o sistema nada tinha a dizer ou a fazer, e de quebra ainda fiquei sabendo que essa aluna tinha um histórico de problemas familiares digno de um filme de terror. Sai da sala da diretora com uma única certeza: nada podia ser feito pela menina, ninguém viria nos ajudar, nem a escola mudaria sua conduta, ditatorialmente ou escravocratamente imposta pela Secretaria de Educação, com objetivo principal de melhorar a performance dos alunos em testes de proficiência nacionais ou internacionais, medida em estúpidas provas de múltipla escolha.
__ Aos poucos, vi aluna mudando: ficou introspectiva, amuada, depois vieram algumas manifestações de revolta difusa, e por fim o seu silêncio, aquele silêncio que grita aos ouvidos daqueles que ainda não abriram mão de sua humanidade. Quantas vezes eu não vi essa mudança em meus alunos? Aquela criança buliçosa, vivaz, com os olhos a brilhar como um par de sóis, de repente começa a mudar, e o seu olhar vai se apagando, até ficar fosco, opaco, espelhando a sua escuridão existencial. A criança travessa se transforma ou num jovem agressivo, com um olhar cínico, como a dizer: “todos os adultos são maus e/ou hipócritas!”, ou então mostram um desânimo, um desencanto invencível, como a dizer: “não adianta lutar!” Aos professores e professoras que adoram dizer: “Como era bom, quando eles eram pequenininhos (como quem diz: “quando davam menos trabalho)!” Eu pergunto: “Será que o que você fez, no tempo que teve com ele, não contribuiu para ele ser o que é hoje?”
__ Vi a criança em questão, ainda ontem, 19 de agosto, num evento em minha escola; ela estava sentada numa mesa do pátio-refeitório, isolada, digitando a tela do seu tablet, certamente para grande alegria dos burocratas da educação que só têm olhos para a tecnologia, e eles decerto também exultariam, eufóricos, ao verem o que eu vi com um imenso pesar: vários alunos, uma meia dúzia pelo menos, encostados em uma parede, um ao lado do outro, silenciosos, a dedilhar compulsivamente o seu celular, indiferentes a tudo que acontecia ao redor, naquilo que deveria ser uma festa de nosso folclore. E a socialização? Para os burocratas da educação paulista, parece que gente é apenas máquina que fala; máquina não precisa de socialização! Para provar o quanto a socialização deles é perigosamente precária, assim que se viram constrangidos a largar dos celulares começaram a espalhar a desordem pelo pátio, obrigando, por várias vezes, a nossa firme intervenção.
__ É verdade que a escola não pode resolver todos os problemas familiares que se manifestam nos alunos, mas também é verdade que a escola é uma comunidade, uma microssociedade, com um elemento privilegiado: o número avultado de crianças e jovens de todas as idades num espaço exíguo, e nesse ambiente a socialização não é só um dever, é até, pelo contexto da escola, uma obrigação desta! Por que não a realiza? Porque o avantajado nível de socialização, e consequente afetividade, de uma criança, que a tornará um ser humano viável, não pode ser medido por exames de provas de múltipla escolha, e, por conseguinte, não pode ser chacoalhado diante das câmeras durante uma campanha eleitoral. Índices pessoais de felicidade ou de sucesso não elegem ninguém... Mas, pensando bem, já que ninguém mais trombeteia índices de desempenho escolar, e ninguém parece dar falta disso, uma vez que nessa esfera só temos colhido fracassos, porque não aproveitar, agora que ninguém está reparando, e fazer a coisa certa?
__ Aqueles termos que uma pessoa comum costuma dirigir a outras pessoas como: amigo (a), companheiro (a), confidente, pai, mãe, esposo (a), amante, etc., essa menina agora deve dirigir ao seu tablet, seu companheiro de todas as horas de sua selva de silêncio, solidão e incompreensão; mas, o que ela fará no dia em que descobrir que essa máquina é insuficiente para atender às demandas cada vez mais complexas de seu desenvolvimento emocional? Enquanto isso, diante da indiferença geral de adultos, pais, professores, burocratas, políticos, sindicatos, preocupados apenas em preservar ou expandir a sua zona de conforto pessoal ou coletiva, expresso nas palavras de uma supervisora de ensino local: “O emocional não nos interessa”, iremos colhendo os fracassos de rotina, tanto na educação como na política do país.

__ O crime organizado e as cracolândias agradecem. A morte e a loucura também.

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