A
ESCOLA DESUMANA DE SÃO PAULO
Prof
Eduardo Simões
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Quando notei essa aluna pela primeira vez em sala de aula, chamou-me a atenção
o seu ar acentuadamente infantil para uma aluna de 6º ano, com seus dez para
onze anos, reforçado pelas inúmeras vezes em que a surpreendi falando e
brincando com seus objetos de estudo: lápis, caneta, borracha, apontador, etc.
como se fossem seres animados, assim como fazem as crianças de 3 a 5 anos,
dando vida a coisas inanimadas – o grande Piaget chamava isso de simbolismo,
próprio de uma causalidade ainda “animista”.
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Sua defasagem chamou-me a atenção e dirigi-me à coordenadora e diretora para
saber se havia algo, fora o habitual de minha profissão e do currículo oficial
de nossa escola (pública), que pudesse ser de ajuda a essa “criança”. Para
“variar” o sistema nada tinha a dizer ou a fazer, e de quebra ainda fiquei
sabendo que essa aluna tinha um histórico de problemas familiares digno de um
filme de terror. Sai da sala da diretora com uma única certeza: nada podia ser
feito pela menina, ninguém viria nos ajudar, nem a escola mudaria sua conduta,
ditatorialmente ou escravocratamente imposta pela Secretaria de Educação, com
objetivo principal de melhorar a performance dos alunos em testes de
proficiência nacionais ou internacionais, medida em estúpidas provas de
múltipla escolha.
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Aos poucos, vi aluna mudando: ficou introspectiva, amuada, depois vieram algumas
manifestações de revolta difusa, e por fim o seu silêncio, aquele silêncio que
grita aos ouvidos daqueles que ainda não abriram mão de sua humanidade. Quantas
vezes eu não vi essa mudança em meus alunos? Aquela criança buliçosa, vivaz,
com os olhos a brilhar como um par de sóis, de repente começa a mudar, e o seu
olhar vai se apagando, até ficar fosco, opaco, espelhando a sua escuridão
existencial. A criança travessa se transforma ou num jovem agressivo, com um
olhar cínico, como a dizer: “todos os adultos são maus e/ou hipócritas!”, ou
então mostram um desânimo, um desencanto invencível, como a dizer: “não adianta
lutar!” Aos professores e professoras que adoram dizer: “Como era bom, quando
eles eram pequenininhos (como quem diz: “quando davam menos trabalho)!” Eu
pergunto: “Será que o que você fez, no tempo que teve com ele, não contribuiu
para ele ser o que é hoje?”
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Vi a criança em questão, ainda ontem, 19 de agosto, num evento em minha escola;
ela estava sentada numa mesa do pátio-refeitório, isolada, digitando a tela do
seu tablet, certamente para grande alegria dos burocratas da educação que só
têm olhos para a tecnologia, e eles decerto também exultariam, eufóricos, ao
verem o que eu vi com um imenso pesar: vários alunos, uma meia dúzia pelo
menos, encostados em uma parede, um ao lado do outro, silenciosos, a dedilhar
compulsivamente o seu celular, indiferentes a tudo que acontecia ao redor,
naquilo que deveria ser uma festa de nosso folclore. E a socialização? Para os
burocratas da educação paulista, parece que gente é apenas máquina que fala;
máquina não precisa de socialização! Para provar o quanto a socialização deles
é perigosamente precária, assim que se viram constrangidos a largar dos
celulares começaram a espalhar a desordem pelo pátio, obrigando, por várias
vezes, a nossa firme intervenção.
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É verdade que a escola não pode resolver todos os problemas familiares que se
manifestam nos alunos, mas também é verdade que a escola é uma comunidade, uma
microssociedade, com um elemento privilegiado: o número avultado de crianças e
jovens de todas as idades num espaço exíguo, e nesse ambiente a socialização
não é só um dever, é até, pelo contexto da escola, uma obrigação desta! Por que
não a realiza? Porque o avantajado nível de socialização, e consequente
afetividade, de uma criança, que a tornará um ser humano viável, não pode ser
medido por exames de provas de múltipla escolha, e, por conseguinte, não pode
ser chacoalhado diante das câmeras durante uma campanha eleitoral. Índices
pessoais de felicidade ou de sucesso não elegem ninguém... Mas, pensando bem,
já que ninguém mais trombeteia índices de desempenho escolar, e ninguém parece
dar falta disso, uma vez que nessa esfera só temos colhido fracassos, porque
não aproveitar, agora que ninguém está reparando, e fazer a coisa certa?
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Aqueles termos que uma pessoa comum costuma dirigir a outras pessoas como:
amigo (a), companheiro (a), confidente, pai, mãe, esposo (a), amante, etc.,
essa menina agora deve dirigir ao seu tablet, seu companheiro de todas as horas
de sua selva de silêncio, solidão e incompreensão; mas, o que ela fará no dia
em que descobrir que essa máquina é insuficiente para atender às demandas cada
vez mais complexas de seu desenvolvimento emocional? Enquanto isso, diante da
indiferença geral de adultos, pais, professores, burocratas, políticos,
sindicatos, preocupados apenas em preservar ou expandir a sua zona de conforto
pessoal ou coletiva, expresso nas palavras de uma supervisora de ensino local:
“O emocional não nos interessa”, iremos colhendo os fracassos de rotina, tanto
na educação como na política do país.
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O crime organizado e as cracolândias agradecem. A morte e a loucura também.
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